Em 2020, celebra-se pela primeira vez, sob os auspícios da UNESCO, o Dia Mundial da Língua Portuguesa. O 5 de Maio, que era já uma data festejada entre falantes desta língua global como um dia especial de comemoração e partilha, adquire neste ano uma relevância oficial e internacional que consolida a comunidade dos falantes do português e daqueles que o usam como língua de estudo, de trabalho, de comunicação, de criação e de aproximação.
O Pelouro para a Promoção da Língua Portuguesa da Reitoria da Universidade do Porto tinha planeado, para assinalar esta festividade, uma semana de eventos culturais e académicos de diversa natureza que teriam lugar em diversos pontos da cidade e da Universidade. A COVID19, que nos obrigou a mudar súbita e radicalmente de hábitos e de rotinas, levou-nos a ter de adiar muitas das iniciativas em que estávamos a trabalhar quando fomos surpreendidos pela suspensão de atividades presenciais e pelas restrições às viagens e às deslocações dentro e fora de Portugal. Podíamos ter escolhido “migrar” muitas dessas atividades para uma plataforma digital – mas já estamos todos cansados de viver pendurados de ecrãs de computador que, por muito úteis que sejam, não nos deixam transmitir por completo o calor de uma alegria comum. Podíamos ter restringido as comemorações a participantes exclusivamente portugueses ou residentes em Portugal – mas quem já se sentou numa mesma mesa com falantes do português vindos de vários países, em torno de um pouco de comida e bebida e usando a língua portuguesa como língua de convívio, sabe que esta é uma língua que é amiga do toque, do abraço, da proximidade, do reencontro depois de longas viagens de todos os continentes. Não, fazermos uma comemoração zoombie desta língua que nos une nunca seria a mesma coisa. Resolvemos, por isso, adiar as comemorações do Dia Mundial da Língua Portuguesa na Universidade do Porto para quando pudermos voltar a receber os nossos amigos e falar-lhes cara a cara, de braço dado, segredos ao ouvido e gargalhada franca.
A importância do português no mundo é inquestionável: os números dos seus falantes, das pessoas que o querem aprender, das instituições em que se ensina e investiga a língua, das publicações literárias, técnicas e científicas escritas em português e dos negócios internacionais que se fazem usando esta língua como instrumento de troca e de comunicação não cessam de aumentar. O reconhecimento oficial, por parte da UNESCO, de um dia mundialmente consagrado para a relevância desta língua é a prova disso e deve deixar-nos felizes e esperançados no futuro do português como língua de muitos.
O português é, hoje, um dos mais impressionantes instrumentos mundiais para a fraternidade entre povos, entres países, entre culturas e entre economias que convergem num ponto que é promessa de paz e cooperação: a escolha de uma língua partilhada onde cabem todas as cores, todas as entoações e todas as visões do mundo para se construir uma comunidade de povos irmãos.
Na Universidade do Porto – a única do país a ter uma pró-reitoria exclusivamente dedicada à promoção da língua portuguesa –, não podíamos viver sem o português. Na Universidade do Porto, onde o português é objeto de ensino, investigação e formação de profissionais avançados (linguistas, professores, tradutores, editores, …), o português é a principal língua de transmissão de conhecimento. É o testemunho vivo dos especiais laços de amizade com os países em que a língua portuguesa é língua oficial – vejam-se os significativos números de estudantes internacionais oriundos do Brasil e de outros países da CPLP. É a língua em que muito do conhecimento científico é produzido, publicado e partilhado. É a língua com que cimentamos amizades e contactos. É um dos principais motivos por que nos procuram muitos estudantes de todas as partes do mundo. É o laço que nos une a muitas universidades de países de língua oficial portuguesa com os quais cooperamos em diversas áreas do saber, na criação e na difusão do conhecimento científico.
Vários projetos, várias iniciativas, têm contribuído para afirmação da Universidade como parceira das principais instituições que têm a missão de ampliar o espaço do português no mundo e de fortalecer os laços entre os países e territórios que falam português. A 1ª Reunião Técnica do Conselho de Ortografia da Língua Portuguesa – o organismo internacional tutelado pela CPLP com o mandato de regular multilateralmente o uso da ortografia do português –, realizada com grande sucesso na Universidade do Porto em outubro de 2019, é um dos sinais do papel de relevo que a Universidade pode e quer desempenhar a este nível. Os protocolos de colaboração com o Instituto Português do Oriente, para a intensificação do acolhimento de estudantes de Macau na nossa Universidade, ou com o Instituto Politécnico de Macau, para a coedição da revista Orientes do Português, bem como a assinatura de um protocolo que nos torna parceiros do Museu de Língua Portuguesa de São Paulo após a sua reabertura em 2020, são, entre outros exemplos que poderiam aqui ser enunciados, algumas das iniciativas com que pretendemos assinalar a importância dada ao português ao mais alto nível dentro da Universidade.
Este portal – onde diariamente partilhamos notícias, anúncios e informações que pretendem aumentar o conhecimento geral acerca da língua, dar conta da vitalidade de um espaço de trabalho e de investigação à escala mundial e demonstrar que ter formação em português e/ou ser falante da língua representa uma vantagem em termos de sucesso académico e profissional em praticamente todos os países do mundo – é a janela por onde deixamos ventilar a nossa dedicação à causa da valorização desta língua.
Entre as iniciativas que estavam previstas para o dia de hoje e para esta semana, contávamos com a apresentação pública de um livro organizado por Francisco Calvo del Olmo e Sweder Souza, da Universidade Federal do Paraná, sobre o português falado no mundo. Trata-se de uma obra com tantos capítulos quantos os países e territórios em que o português é falado, reservando para cada um deles um texto específico. O livro é um espelho da variedade de padrões e de formas de viver o português onde se esconde o verdadeiro segredo da riqueza e da vitalidade da nossa língua comum. O vírus que nos obriga a ficar em casa atrasou ligeiramente a publicação da obra e impediu-nos de fazer o seu lançamento público (que, esperamos, terá lugar mais tarde, ainda no corrente ano). O livro é o primeiro de uma nova coleção da editora da Universidade do Porto exclusivamente dedicada à publicação de obras sobre a língua portuguesa – um outro sinal da importância que lhe concedemos enquanto prática social, enquanto parcela fundamental de um património cultural comum a diversos povos e também enquanto disciplina académica. Não nos sendo possível apresentá-lo publicamente numa casa dedicada ao português, com a presença dos seus autores e numa sessão completada por programa cultural mais rico, deixamos aqui uma antecipação do que será esse volume, publicando as versões (ainda não inteiramente definitivas) da introdução e do prefácio do livro, assinados, respetivamente, pelos seus organizadores e pelo Professor Carlos Faraco, uma das vozes internacionalmente mais relevantes na defesa do carácter desta língua global e que nos dá a honra de aceitar ser publicado numa editora como a da Universidade do Porto.
Ainda que sem o convívio social que os falantes do português tão bem associam à sua língua, desejamos a todos um Feliz Dia Mundial da Língua Portuguesa e deixamos um apelo: sintam-na, falem-na, escrevam-na, leiam-na, prezem-na, ouçam-na, apercebam-se das portas que ela nos abre e das paisagens que ela nos mostra, lembrem-se das amizades que já construíram com a sua ajuda.
Sintam que, sem ela, a Humanidade não teria pérolas como esta:
Em quantas partes?
Em quantas partes se divide um grito
em quantos corações se parte uma terra
em quantos olhos se come o sol
e em quantos pães se mata um sonho?
E se uma mulher despida é sempre um desejo
mais aperfeiçoado do que todos os milagres
o que significa neste Mundo o miolo
de um pão obsceno às metades
na mesa de seis bocas?
E quando é certo que um negro
dorme os velhos sonos tão completamente
só imitando outra pessoa a dormir quando já não pode
carregar um saco
ou levar o menino à escola
em quantas partes se divide um riquexó na ilha
em quantas partes se vive uma chávena de chá
em quantos sofás de mandioca se deita a filha mais nova
e em quantas partes se morde um bife de nervo
até ao delírio do osso no espaço tenro
do mundo na lua espetada num tronco
de imbondeiro no jantar engendrado no mato?
E neste poema em quanto trapos
se esconde o rei da fome de cada um
e levanta a cabeça o preciso
verso da fome de cada lei?
(José Craveirinha,
Karingana Ua Karingana)
Em quantas partes se divide a língua portuguesa? Em todas – em todas as cores e em todas as letras que a escrevem – e numa só, na da fraternidade e união que unem para sempre os que a trazem no coração e na boca.
João Veloso
Pró-Reitor da Universidade do Porto para a Promoção da Língua Portuguesa
Dia Mundial da Língua Portuguesa, 5 de maio de 2020