Trata-se de um manuscrito de Abel Salazar – emblemático investigador, médico e professor catedrático da Universidade do Porto (U.Porto), que foi ainda artista e escritor –, consta do espólio de arquivos da Casa-Museu Abel Salazar e esteve muitos anos guardado e fechado à chave num cofre.
“Após a morte do seu amigo Alberto Saavedra, que tão bem guardara este documento, o mesmo foi doado pelos seus familiares à Associação Divulgadora da Casa-Museu Abel Salazar”, conta Teresa Cabral, médica psiquiatra, também colaboradora da Associação, e autora do prefácio de Testamento de um Morto Vivo Sepulto na Casa dos Mortos, em Barcelos.
Esta publicação, coeditada pela U.Porto Press, pela Casa-Museu Abel Salazar e pela Associação Divulgadora da Casa-Museu Abel Salazar, é a mais recente novidade editorial da Editora da Universidade do Porto, na Coleção Pensamento, Arte & Ciência. Esta coleção, criada em 2022, começou por integrar o título Paris em 1934, também de Abel Salazar, e é dedicada à edição e reedição de obras do autor.
LANÇAMENTO DO LIVRO
O lançamento de Testamento de um Morto Vivo Sepulto na Casa dos Mortos, em Barcelos, decorrerá na próxima segunda-feira, 14 de novembro, no Auditório da Casa Comum, ao edifício histórico da Reitoria da U.Porto, e terá lugar após a inauguração da exposição Todo o Abel Salazar, agendada para às 18h00, na Galeria I da Casa Comum, onde ficará patente até 17 de fevereiro de 2023.
A sessão será conduzida por Fátima Vieira, Vice-Reitora da U.Porto para a Cultura e Museus, e contará com intervenções dos psiquiatras Teresa Cabral (autora do prefácio do livro) e Jorge Mota.
A entrada é livre.
SOBRE A OBRA
Testamento de um Morto Vivo Sepulto na Casa dos Mortos, em Barcelos foi escrito por Abel Salazar durante o seu internamento na Casa de Saúde de S. João de Deus, em Barcelos, à qual chegou após um primeiro internamento na Casa de S. Francisco, no Porto, e um outro intermédio em instituição que Teresa Cabral não conseguiu descodificar, ao longo da sua pesquisa. Abel Salazar sofrera de uma doença psíquica, que a autora do prefácio situa entre 1926 e 1931.
Após um período de intensa atividade académica e profissional, entre as artes e as ciências, Abel Salazar padeceu de um isolamento, descrevendo esta sua “nova” existência como “Uma doença maldita e horrível”, que o obrigara a “andar para trás e para diante fechado num quarto” há 7 meses, dizia numa carta dirigida a um amigo, durante o seu confinamento ainda no Porto. “O meu sofrimento não tem descrição possível; passar duma actividade frenética à absoluta inactividade, a um boneco, é o cúmulo do horror”. Prosseguia, detalhando que tudo tinha começado na Holanda e que depois, em Paris, passara por “vagos estados de ansiedade e vertigem”. Já no Porto “começa-me a fugir a vista, a sentir coisas esquisitas (…). Insónias, impossibilidade de suportar a luz, a vista perturba-se-me e estraga-se por completo, uma tristeza horrenda cai sobre mim (…)”. A concluir a carta, Abel Salazar dizia-se “exausto por ter escrito isto com grande esforço”.
Para a doença terão contribuído desaires quer da sua vida académica, quer da sua vida pessoal, nomeadamente a perda da sua mãe para uma “doença incurável”, já durante o seu internamento em Barcelos, entre 1928 e 1931, sendo que “Abel Salazar era a única pessoa da família que sabia tratar-se [de tal]”, conforme referência de Teresa Cabral no prefácio. E esta não foi a única perda a pesar a Abel Salazar, já que “Nos primeiros dez anos de um percurso de ascensão na vida académica, (…) tivera na sua vida pessoal várias outras perdas afetivas por morte de familiares com forte significado para si”, continua Teresa Cabral.
“O início súbito da doença de Abel Salazar acontece após uma longa sequência de desapontamentos, de várias origens, que se entrelaçam entre si.
Não é difícil imaginar-lhes o impacto tratando-se de pessoa com uma personalidade complexa e multifacetada, que muito exigia de si próprio e que cultivava valores morais e intelectuais elevados”, conclui Teresa Cabral.
Segundo a autora do prefácio, quando Abel Salazar começou a escrever o manuscrito, “muito provavelmente em 1930, já depois da morte da sua mãe” (…), “a doença já estava longe da fase aguda”. Defende, ainda, que “O seu testemunho sugere ter passado por períodos de grande sofrimento interior, entre o físico, o moral e o intelectual (…)”.
Os conteúdos do manuscrito remetem para a medicina, num momento inicial, “tomando depois várias formas de diálogo interno”, que passam pela “’doença física’ – estados melancólicos, às vezes cíclicos e com diferentes evoluções” que o próprio Abel Salazar foi notando durante o internamento em Barcelos. Também aborda “possíveis causas fisiológicas, formas e tipologias evolutivas”. Através da escrita deste manuscrito “mostra-se desolado”, quer em resultado dos “golpes do destino”, quer perante “o estado embrionário da psiquiatria da época”.
Abel Salazar considerava inútil o tratamento da doença e que a ajuda adviria, sobretudo, “daquilo que os doentes procuram, informando-se uns dos outros”.
Neste manuscrito remete, ainda, para a sua paixão pela arte e pela ciência; para os seus “dilemas e reflexão pessoal” neste contexto.
No entendimento de Teresa Cabral, quando escreveu o manuscrito, passados quatro anos desde que surgiu a doença, “o desenlace da morte da mãe e este esforço de escrita poderão ter funcionado como um detonador que o faz despertar para o mundo dos vivos. Numa tenacidade inconformada parece lançado num exercício intelectual de recuperação de auto-estima e funcionalidade, procurando uma porta de saída condigna”.
Esta publicação está disponível na loja online da U.Porto Press.