(...)"Inteligência deslumbradora, tudo abrangendo e tudo compreendendo; sempre numa atitude de firme tolerância, que é a única arma capaz de romper os diques que a intolerância opõe à libertação do espírito; alma de generosidade espontânea, dissipando às mãos cheias os primores da Ciência e da Arte para que todos os colham e considerem seu património; Abel Salazar é figura dum transcendente humanismo, ultrapassando o tempo e o meio em que viveu."(...)
(Discurso proferido pelo Dr. Eduardo dos Santos Silva no funeral do Sr. Professor Abel Salazar)

A 19 de Julho de 1889, nasceu em Guimarães Abel Salazar, filho mais velho de Adolfo Barroso Pereira Salazar e de Adelaide da Luz Silva Lima Salazar.
Na "cidade berço", o seu pai trabalhava como secretário e bibliotecário da Sociedade Martins Sarmento, era professor de Francês na Escola Industrial Francisco de Holanda e escrevia na "Revista Guimarães". Nesta cidade, Abel Salazar completou a escola primária e fez parte dos estudos liceais no Seminário-Liceu, onde foi colega de Manuel Gonçalves Cerejeira, futuro Cardeal Patriarca.
A exclusão do Francês dos currículos escolares vimaranenses terá motivado a vinda da família para o Porto.
Em 1903 ingressou no Liceu Central do Porto, em S. Bento da Vitória, onde concluiu a 7ª classe de Ciências (1906-1907). Já então se fazia notar o seu sentido republicano e democrático, que viria a marcar toda a sua vida. Inspirado pelo momento político, publicou, com outros estudantes, um jornal escolar de pendor republicano ("O Arquivo"), que refletia, não só os seus interesses pelos ideais revolucionários, mas também as suas aptidões artísticas, uma vez que encarregou de fazer caricaturas de colegas e de professores.
Em 1909 matriculou-se na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, provavelmente por influência familiar, pois mais tarde confessaria que o seu desejo era mesmo "tirar" Engenharia Civil. Perdeu a Engenharia e ganharam as Ciências da Saúde. Obteve o diploma em 1915 com a apresentação da tese "Ensaio de Psicologia Filosófica", à qual foi atribuída a classificação de vinte valores.
Em 2 de Maio de 1914 foi nomeado 2º assistente provisório da 4º classe - Anatomia –
Patológica, passando a 1º assistente provisório da 8ª classe - Medicina - por decreto de 23 de outubro de 1915. Por deliberação do Conselho Escolar, foi contratado para reger a cadeira de Histologia, em 18 de outubro de 1916, sendo pelo decreto de 21 de abril de 1917 nomeado professor extraordinário da 2ª classe - Histologia e Fisiologia. Foi, depois, provido no lugar de professor ordinário (artº 105º do decreto nº 4554 do Estatuto Universitário, publicado no Diário do Governo de 9 de julho de 1918), em 1918.
Em 1919, apenas com 30 anos, foi professor catedrático de Histologia e Embriologia. Nesse mesmo ano fundou e dirigiu o Instituto de Histologia e Embriologia, centro homologado pelo Senado da Universidade do Porto, na sessão de 4 de Agosto, juntamente com o Instituto de Anatomia, cuja direção foi entregue a Joaquim Alberto Pires de Lima. O Instituto de Histologia tinha uma dotação financeira irrisória e, em toda a sua existência, lutou sempre com a aflitiva falta de recursos; contudo, isso não desencorajou Abel Salazar que conseguiu realizar aí brilhantes trabalhos de investigação.
Enquanto cientista e professor representou a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em diversos congressos e visitas pela Europa.
Como professor, foi original: nas aulas seguiu uma inovadora orientação pedagógica, com a qual defendia um ensino aberto apoiado na observação, na investigação e na discussão científica e promovia o autodidatismo dos alunos.
Na sua vertente de investigador, efetuou várias pesquisas para clarificar a estrutura e evolução do ovário, criando o famoso método de coloração tano-férrico, de análise microscópica (Método tano-férrico de Salazar). Entre 1919 e 1925 o seu trabalho ganhou fama mundial, sendo editado em inúmeras revistas científicas. Publicou cento e treze trabalhos científicos nas áreas dos aparelhos de Golgi e Para Golgi, Método Tano-Férrico, ovário, tecido conjuntivo, anatomia do cérebro, tecido celular, sangue, técnica de desenho microscópico e outros temas. Com Athias Marck e Celestino da Costa, fundou os Arquivos Portugueses de Ciências Biológicas, que chegou a dirigir.
Em 1921 casa-se com Zélia de Barros, de quem não chegou a ter filhos. Em 1926, ao fim de 10 anos de um notável trabalho, mas em condições adversas, sofreu um esgotamento e interrompeu a sua atividade por um período de 5 anos. Quando regressou à faculdade em 1931, cheio de projetos, teve uma enorme desilusão: o Instituto, o seu instituto encontrava-se praticamente ao abandono e desprovido da biblioteca, entretanto absorvida por Anatomia.
Nos anos que se seguiram ao reinício da vida ativa, reconstruiu o laboratório e prosseguiu o trabalho nas suas diversas áreas de interesse, tais como a Ciência, a Arte e a Filosofia. Participou em dois "Congressos dos Anatomistas" (a 27ª e 28ª reuniões, respetivamente em 1932, em Nancy, e em Lisboa, em 1933) e escreveu obras e artigos, nomeadamente na revista "Medicina" dos Estudantes de Medicina de Lisboa.
Entretanto, a situação política em Portugal degradara-se. A Ditadura não admitia vozes críticas ou a divulgação de ideias democráticas. E assim, sem surpresa, Abel Salazar foi afastado da Universidade em 1935 ("da sua cátedra e do laboratório, estando proibido de frequentar a biblioteca e de se ausentar do país). E como as ditaduras não são originais, o motivo invocado para o expulsar foi "a influência deletéria da sua ação pedagógica sobre a mocidade universitária" (Portaria de 5 de junho de 1935).
Na Grécia Antiga, Sócrates ouvira o mesmo. Tudo o que restava do Laboratório de Histologia coube numa carroça.
Na mesma altura, foram também expulsos outros professores da Universidade do Porto, como Aurélio Quintanilha, Manuel Rodrigues Lapa, Sílvio Lima e Norton de Matos.
Fora da Universidade centrou, então, as suas preocupações no domínio dos problemas sociais, filosóficos (ideais progressistas), políticos (antifascista), estéticos e literários, assim como na produção artística. Como pensador, escreveu essencialmente sobre a filosofia das Ciências e das Religiões, em livros, revistas e jornais como "O Diabo", "Sol Nascente", "O Trabalho", "Esfera" e "Seara Nova". Nos anos trinta e na qualidade de prosador, deu à estampa crónicas do tempo passado no exílio parisiense e pitorescas descrições em obras como "As recordações do Minho Arcaico". Na sua vertente de crítico de arte elaborou, entre outros, exaustivos estudos sobre Henrique Pousão, Soares dos Reis e Columbano. E na vertente de artista autodidata, produziu na sua casa uma vasta obra na qual são latentes o espírito humanista e o gosto pela experimentação, composta por: gravuras, pinturas (paisagens, retratos, ilustração da vida da mulher trabalhadora e da mulher parisiense), pintura mural, aguarelas, desenhos, caricaturas, escultura e invulgares e muito apreciados cobres martelados.
Em 1941, numa aberta da Ditadura, dirigiu o Centro de Estudos Microscópicos, da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, criado pelo Instituto para a Alta Cultura, por sugestão do Professor Mário de Figueiredo, Ministro da Educação Nacional. Apesar das evidentes restrições financeiras e materiais, prosseguiu a sua investigação, contando com a colaboração de Adelaide Estrada.
A partir de 1942 trabalhou igualmente com o Instituto Português de Oncologia, a convite de Francisco Gentil, vindo a publicar um apreciável número de trabalhos científicos no Arquivo de Patologia Pública. Em 1944 publica Hematologia.
A morte surpreendeu-o em Lisboa a 29 de dezembro de 1946. Encontrava-se na capital há dois meses, na casa de sua irmã Dulce Salazar Dias Ribeiro e do cunhado, o Dr. Dias Ribeiro, para tentar resolver os graves problemas de saúde que tinha. O seu corpo foi trasladado para a cidade do Porto, onde foi depositado no Cemitério do Prado Repouso.
A morte de Abel Salazar transformou-se, ao mesmo tempo, num momento de contestação ao regime e numa imensa e invulgar manifestação de luto. A notícia do seu falecimento abalou a sociedade portuguesa: na viagem para o Norte, o corpo foi desviado de Coimbra onde muitos esperavam para lhe prestarem homenagem. Mas o maior momento estava guardado para o Porto. Milhares de pessoas desfilaram perante o corpo do "sábio" em câmara ardente e ainda mais acompanharam o cortejo fúnebre.
As qualidades deste extraordinário homem da arte e da ciência foram enaltecidas pelos Drs. Lobo Vilela, Ruy Luís Gomes, Eduardo dos Santos Silva, Virgílio Marques Guedes e Araújo Lima e pelo estudante Carlos Barroso. O ataúde foi carregado aos ombros de cidadãos anónimos, que de dez em dez passos, eram rendidos. Junto ao mausoléu, as palavras finais foram proferidas pelo Dr. Barata da Rocha. No dia seguinte, 1 de janeiro de 1949, o seu amigo pessoal, Dr. Ruy Luís Gomes foi detido pela polícia política e interrogado acerca do que se passara no funeral.
Depois da sua morte foi instituída a Fundação Abel Salazar, com os objetivos de preservar e divulgar a sua valiosa e diversificada obra artística. Uma obra constituída por esculturas, desenhos, manequins, pinturas, paisagens, cobres martelados, retratos a óleo e trabalhos em gravura (águas fortes, pontas secas e monotipias). Anos depois, em 1965, a Fundação Calouste Gulbenkian adquiriu a sua casa, em S. Mamede Infesta, Matosinhos, onde vivera durante 30 anos, e todo o seu recheio. Em 1971, a mesma instituição comprou a coleção de obras do artista, que estavam na posse de sua irmã. A Fundação Calouste Gulbenkian patrocinou obras de restauro da Casa e Museu e construiu um pavilhão de exposições, tendo, em 1975, doado este precioso espólio à Universidade do Porto.
A Casa-Museu é hoje gerida pela Universidade do Porto com o apoio da Associação Divulgadora da Casa-Museu.