A fotografia da natureza preenche atualmente a vida profissional de Ricardo Guerreiro, que se dedica a tempo inteiro a esta atividade. Esta aventura começou há três anos, depois de a fotografia ter surgido como complemento de trabalho na ornitologia (área da Biologia que estuda as aves). Um dos seus trabalhos pode ser visto na revista "National Geographic" de junho, onde a cidade de Almada está em destaque. O fotógrafo de 35 anos falou ao Ciência 2.0 da sua paixão por esta área, pelas paisagens e pelos animais selvagens residentes em Portugal.
Quando e como surgiu o seu gosto pela fotografia?
Desde miúdo que via filmes de história natural e o gosto pela imagem relacionada com o mundo natural vem desde a escola primária. O meu envolvimento nesta atividade vem de 2002, altura em que comecei a fazer DigiScoping (fotografia digital com telescópio). A partir daí, fui evoluindo, passando a fotografar com material “convencional” e como complemento ao meu trabalho na ornitologia ou observação de cetáceos nos Açores.
O que lhe dá mais prazer fotografar?
Animais selvagens! Aves em concreto, mas também gosto muito de répteis: osgas e lagartos. Acho que, no fim, gosto de fotografar os bichos com os quais sinto mais empatia. Adoro pequenas rapinas, passarinhos e, como disse, répteis.
Qual foi a fotografia mais difícil de captar? A mais desafiante…
Não sei se tenho assim uma que se destaque. Tenho algumas que foram desafiantes mas, apesar de planeadas, no momento foram captadas de forma um pouco inesperada. Lembro-me de duas que posso partilhar. Uma foi a de um painho que fiz em voo à noite, quando estas aves regressam ao ninho, no ilhéu da Praia, Graciosa.
Basicamente era colocar o foco fixo, disparar a câmara com flash quando se pressentia o vulto ou som da ave a passar perto e esperar que o enquadramento e o foco estivessem certos. De 800 e poucos disparos ao longo da noite, aproveitei uma fotografia. Outra situação foi a captação de peneireiros-das-torres adultos a transportar alimento em voo. Fiquei escondido no carro, com uma teleobjetiva, perto de uma colónia e o desafio era conseguir que, numa aproximação ao ninho, o animal passasse mais perto do carro, numa posição boa, no ângulo “certo” relativamente ao sol, etc... A isto, se adicionarmos as inexatidões do autofoco, etc, digamos que se torna desafiante. No final consegui umas duas ou três imagens que me agradaram esteticamente, mas, mais importante, serviam o propósito na história que queria contar.
Quais as maiores dificuldades que já enfrentou enquanto fotógrafo da natureza? Realça algum episódio caricato em especial?
Não me recordo assim de nenhum episódio no campo ou história caricata para “contar aos netos”. As maiores dificuldades têm sido a falta de apoios e ter o volume de trabalho necessário para subsistir e tornar a atividade viável. O nosso mercado é pequeno e o investimento de tempo e em material muito elevado. Essas têm sido as dificuldades mais retardadoras. Depois há, claro, as dificuldades no campo, soluções que temos de arranjar, o trabalho em si que pode não ser simples, mas isso é incontornável, faz parte. Há também a questão das autorizações, pedidos de circulação em terrenos, etc. Isso pode por vezes ser desmotivador e, quando há lugar a pagamento de taxas, nem compensar o trabalho.
Há algum local do país que ache mais interessante de fotografar? Que lhe dê mais gozo fotografar?
Gosto de fotografar ao nível local. No último ano tenho estado a desenvolver o projeto "Almada Natureza Revelada" com a associação Sciaena e a Câmara Municipal de Almada. Este projeto vem de um desejo muito pessoal e antigo: o de focarmos no aqui e agora em vez de em sonhos remotos, em locais exóticos. Não pretendo obviamente desvalorizar esses sonhos e/ou locais, mas a grande parte das nossas vidas vai ser passada onde vivemos. Então, em vez de passarmos a maioria do tempo a sonhar com “a galinha da vizinha”, vamos apreciar a nossa. Daí descobri que Almada, o concelho, é um local fantástico para fotografar a natureza. Diria que o local que mais gozo me dá fotografar é o local onde estou no momento. Isto é tudo um pouco lírico. É óbvio que tenho os meus locais de eleição. Gosto essencialmente do Sul do país por ligação afetiva (é donde é natural a minha família e o meu imaginário está povoado de memórias que me imprimem um desejo de partilha das paisagens e animais que aí existem via fotografia).
Nasceu na Madeira. Este arquipélago serviu-lhe de inspiração?
Só conheci a Madeira já com 30 anos. Vim embora com 18 meses e só voltei 28 anos depois. Fiquei boquiaberto em espanto com certos locais que visitei lá. Não estava preparado para o que lá ia ver. A partir daí fiquei apaixonado pel’aquela ilha. Tem-me servido de inspiração sim, pelas coisas que lá vivi nestes últimos anos, mas ainda não fiz lá nenhum trabalho da minha autoria. Trabalhei como assistente numa produção espanhola de documentários e nas Selvagens já filmei para projetos meus, mas nada que tenha publicação à vista para já.
Que características tem de ter um bom fotógrafo da natureza?
Penso que as clássicas andam à volta de coisas como paciência, perseverança, paixão pelos temas. Isto é talvez o motor para o trabalho em si, isto é, fazer os disparos e colher boas imagens. Depois, embora isto possa ser subjetivo, um bom fotógrafo tem de ter “bom gosto”. Bom gosto permite fazer bons trabalhos com boas imagens. Não é incomum ver fotógrafos com excelentes fotos, fazer um trabalho que deixa a desejar. Há fotógrafos que admiro muito pelas fotografias que fazem e quando vejo, por exemplo, os livros que publicam, fico até com alguma tristeza pela fraca edição, paginação ou conteúdo que não fotografias. Um amigo fotógrafo dizia que uma característica diferenciadora de um bom fotógrafo para um fotógrafo médio, não era tanto a capacidade de fazer boas imagens, mas antes saber separar as melhores dentro de todas que faz. Concordo plenamente com essa afirmação.
Quais as diferenças da fotografia de natureza para outro tipo de fotografia, na sua opinião? Qual a sua importância?
Julgo que uma grande diferença é a incapacidade de controlar os sujeitos, a meteorologia, etc. E outra ainda, que são os timmings de certos eventos: se falho a nidificação de uma ave, por exemplo, só volto a ter outra oportunidade um ano depois. Na fotografia de moda, publicidade, etc, onde esporadicamente trabalho como assistente, a maioria dos casos são bem controlados, os atores/manequins respondem ao pedido do fotógrafo, as condições em estúdio ou ar livre são razoavelmente controladas, etc. Já para não falar do planeamento, conhecimentos de terreno, conhecimentos de primeiros socorros, etc, que convém ter em dadas expedições de fotografia de natureza mais aventureiras.
Qual é, para si, a importância de um fotógrafo da natureza no panorama geral da ciência?
Vejo essencialmente uma área: a documentação de comportamentos anteriormente desconhecidos ou mal estudados ou a prova da existência de dado organismo numa zona. Acho que aqui a fotografia de natureza é uma ferramenta muito útil para a ciência. Noutra área, se calhar não de ciência pura, mas da sua aplicação à conservação, há vários exemplos de leis de conservação propostas por cientistas, apoiados nos seus relatórios e que estão em banho Maria anos a fio. Por vezes, com um empurrão de um bom trabalho de fotografia, por tocar as pessoas de uma forma que os dados num artigo científico não conseguem fazer, aceleram o processo que se pode resolver em meses ou semanas. Penso que fotógrafos e cientistas devem trabalhar de mãos dadas, sendo o papel do fotógrafo o de ponte entre a ciência e o cidadão “comum”.
Tem alguns projetos ligados à fotografia de natureza. Pode falar-nos um pouco sobre eles?
Estou neste momento e, pelo menos até ao fim do ano, a trabalhar no projeto "Almada Natureza Revelada". Depois tenho também em decurso um projeto de filme de história natural, com o fotógrafo Luís Quinta o qual pensamos ter pronto no Outono.
Quais os seus projetos para o futuro?
Tenho outros projetos pensados, alguns em fase preliminar de busca de apoios e recolha de algumas imagens para uma primeira delineação da ideia, etc. Todos em torno de temas relacionados com o mundo natural e essencialmente na zona sul do país.
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Foto: Ricardo Guerreiro
Na foto: Paisagem primaveril na Fonte da Telha, Almada