No dia mundial da saúde mental, o Ciência 2.0 aborda a doença que prolonga o combate mental de muitos militares, após o cessar fogo. Falamos do stress pós-traumático.
Após a exposição a uma situação sentida como profundamente ameaçadora, as consequências a nível psíquico podem ser irreversíveis. Ansiedade constante, um estado de hipervigilância, o evitamento dos estímulos que possam recordar a situação traumática e episódios de re-experiênciação dessas vivências são alguns dos sintomas da perturbação pós-stress traumático (PPST) mais conhecida como stress pós-traumático.
Episódios de grande violência vividos individualmente, acidentes ou situações de guerra são situações passíveis de desencadear esta doença. Provavelmente ela existiu durante toda a história da humanidade, mas a patologia em si começou a ser estudada em vítimas do holocausto, após a 2ª guerra mundial, e foi reconhecida nos quadros psiquiátricos em 1980, na sequência da guerra do Vietname. Em Portugal estima-se que existam cerca de 58 mil casos em ex-combatentes, fundamentalmente da guerra colonial. [ver recursos]
Luísa Sales, responsável pelo Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar de Coimbra e coordenadora do Centro de Trauma adianta que “é normal uma resposta de ansiedade, angústia e alterações de sono após uma situação traumática, mas, num quadro não patológico, passado um tempo a pessoa consegue lidar com a situação”.
“Há um aumento da produção de hormonas relacionadas com a ansiedade o que leva a um exacerbar de respostas que o organismo habitualmente tem em situações de alerta e não há um voltar ao estado de acalmia quando passa a ameaça”, explica.
Quando as memórias controlam as ações
“Consideramos que existe um distúrbio de stress pós-traumático a partir de um mês de evolução da situação, e mantendo-se este quadro ao longo de três meses, estamos perante uma situação de doença crónica”.
Nesta situação crónica podem ocorrer alterações na regulação do afeto (momentos de tristeza profunda e explosões de agressividade), alterações da auto-perceção (sentimentos de inadequação, vergonha e desespero), alterações neuro-vegetativas (insónias), alterações de consciência (revivência de momentos traumáticos) e alterações no relacionamento com os outros (isolamento e desconfiança). Frequentemente as memórias do trauma são mal estruturadas, funcionando como flashs de episódios que não formam um todo homogéneo.
“No meu caso, após regressar do ultramar, em 1974, estive dois meses na rua a dormir, porque tinha vergonha de voltar para casa. Só voltei porque um colega me encontrou e me levou para junto da família”, revela João Sobral, ex-combatente na guerra colonial e atual presidente da associação Apoiar (que presta assistência a ex-combatentes). Após voltar a casa, no período de um ano João sentia-se readaptado. No entanto, conta que passados 14/15 anos os sintomas voltaram e acabou mesmo por ser internado numa ala de psiquiatria, sem o diagnóstico correto.
De facto, segundo Luísa Sales, pode haver um grande período de latência do problema até que uma pontual vulnerabilidade psicológica desencadeie todo o quadro patológico.[ver recursos]
Aprender a viver com o stress pós-traumático
“Hoje sabemos lidar melhor com a doença. Ela nunca desaparece, nós aprendemos é a lidar com ela. Evitamos estar em contacto com tudo o que nos possa trazer alguma ansiedade ou lembranças”, refere o ex-combatente, a quem foi diagnosticado stress pós-traumático já em 1990.
O tratamento passa pela conjugação de estratégias psico-terapêuticas e respostas psico-farmacológicas que, não sendo específicas, ajudam a tratar alguns sintomas. Dentro das estratégias comportamentais, é importante que, através de um trabalho progressivo, “a pessoa sinta que o organismo não tem de responder com o alerta desmesurado de perigo de vida porque aquela situação já não existe”.
Tanto o ex-combatente como a psiquiatra Luísa Sales salientam a importância de uma maior divulgação pública dos sintomas que justificam a procura de um técnico, assim como a maior formação dos médicos de clínica geral para que a doença seja sinalizada rapidamente.
Foto: Flickr/chrissuderman