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Artigo
Publicado em 28/11/2013 por Renata Silva

Colaborou com diversos jornais e revistas por meio de artigos sobre figuras importantes da História de Portugal, sobretudo mulheres. Luísa V. Paiva Bóleo, escritora e historiadora, falou em entrevista ao Ciência 2.0 sobre a paixão por esta área e pela investigação e descreve as características necessárias a um bom trabalho de pesquisa histórica.

Como é que surgiu o seu interesse e gosto pela História?

Este gosto surgiu nos meus tempos de criança. Acho que a maior parte das pessoas ignora que a História é provavelmente a única disciplina em que todas as outras disciplinas cabem, por exemplo a Geografia e a Filosofia também. Tudo está dentro da História, até no contar da história da humanidade. Mesmo antes de existirem seres humanos, já existe história.

Eu escolhi esta área, mas dediquei-me mais à história das mulheres e de Portugal.

E o que a levou a dedicar-se de forma mais aprofundada à história das mulheres?

Estava em Lisboa a trabalhar e fiquei a conhecer bem o trabalho da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, que era da Presidência do Conselho de Ministros. Lá li vários livros e tive uma noção mais exata do que eram as desigualdades, a falta de oportunidades, todo o historial das mulheres. Tendo já nessa altura a licenciatura em História, senti muito interesse em aprofundar os meus conhecimentos nessas áreas. Trabalhei na comissão durante 11 anos. Escrevi durante esse tempo muitos artigos para revistas e jornais.

Na sua opinião qual foi a mulher ou mulheres que considera que teve um papel mais importante na História de Portugal?

É muito complexo. Nós temos praticamente 900 anos de história. Desde D.Afonso Henriques e eu não estou agora a falar das lutas entre D.Teresa e D.Afonso Henriques, e acho que isso não é relevante porque é numa altura em que os irmãos também lutavam e é diferente do que é hoje. D.Teresa fundou leprosarias (a lepra era uma das doenças mais graves da época) onde havia quem tratasse dos leprosos que iam em peregrinações. A rainha Santa Isabel teve um papel muito importante, não por ser caridosa, mas porque intervinha nas questões do país. A D. Maria I, que reconheço que não lhe é dado o devido valor, também foi uma mulher muito importante no setor cultural porque criou a Casa Pia, a Biblioteca Nacional, subsidiou as expedições científicas no Brasil... De uma maneira geral as nossas rainhas eram pessoas com personalidade e com bastante cultura. Há muitas outras mulheres talvez mais discretas que tiveram um papel também muito importante. Na atualidade, existem diversas cientistas com trabalhos e descobertas importantes na área do cancro, por exemplo. E nesse aspeto já não nos podemos queixar muito de discriminação. A investigação delas chega a um determinado ponto que já não se discute se é homem ou mulher.

O feminismo faz sentido nos dias de hoje, em Portugal?

Claro. Para mim e para a maior parte das pessoas que tenham um pensamento feminista filosófico. Só deixaremos de lutar quando realmente houver metade homens, metade mulheres, na Assembleia da República, nos bancos, nas instituições.

É o mínimo que se pode pedir. Não é uma utopia. Depois de termos conseguido isso no nosso país, teríamos de nos esforçar para que isso aconteça nos países mais atrasados nessa matéria, como é o caso da Índia.

Qual foi a primeira grande investigação que fez?

Grande, grande, terá sido uma sobre a D.Maria I – que resultou em livro - embora tenha feito muitas outras investigações, nomeadamente para uma revista feminina nos anos 80, sobre outras mulheres, mas esta foi a que demorou mais tempo – cerca de 4 anos. Estes 4 podem resumir-se a 2, porque trabalhava durante a semana e só ao sábado é que tinha tempo de ir pesquisar para a Biblioteca Nacional e para a Torre do Tombo. Tirava centenas de fotocópias e lia em casa e tinha a sorte de poder pedir emprestados livros importantes aos meus amigos e familiares. Ao fim-de-semana dedicava-me à investigação e passava lá muitas horas. Uma das grandes dificuldades que tive foi tentar ler todos os autores que havia sobre esse assunto e em particular sobre o século XVIII. Fazer comparações foi outra dificuldade que tive, porque cada autor tem a sua interpretação.

Como é que funciona o processo de investigação para escrever uma biografia, por exemplo? Que fontes e que dados procurar?

Tive muita sorte porque o meu pai era catedrático de filologia e, em casa, ensinava como se fazia uma investigação. O método é um pouco diferente dos tempos de hoje, mas não deixa de ser assim. Primeiro temos de procurar tudo o que há, por exemplo, sobre a rainha D. Maria I, o que é que foi escrito sobre ela, todos os artigos e ver também o que está divulgado na internet. Ler tudo o que foi escrito, saber quais são as lacunas (se falta informações sobre a infância, por exemplo) e depois passar muitos meses na Biblioteca Nacional. A Biblioteca Nacional continua a ser muito importante. A internet é importante porque nos dá a bibliografia. Em história não escrevemos os capítulos por ordem cronológica, por exemplo, se eu sei mais sobre a altura em que ela já era rainha, escrevo sobre isso e só depois é que vou estudar a infância, etc.

“O que acho mais perigoso hoje em dia em História é o sensacionalismo”

Quais os maiores desafios e dificuldades de fazer investigação histórica?

As contradições. Existem muitas e há muita informação que não conseguimos apurar. Às vezes tentamos saber pequenos pormenores junto de todas as pessoas da área e não se consegue saber ao certo a resposta. Ainda hoje não consigo perceber por que é quando nascem os infantes ou as infantas, se disparam 21 ou 42 tiros de canhão. Perguntei a pessoas da marinha, mas ninguém me soube responder.

Há outras perguntas cuja resposta não se sabe, por exemplo, por que é que determinadas pessoas tinham importância e influenciavam o rei. Existem também distâncias nas datas e pessoas que dizem muito bem de alguém e às vezes até dizem coisas totalmente erradas. Nós não podemos ser apaixonados em história. Em história não podemos dizer que odíamos ou amamos uma figura. Temos de apresentar ao leitor a figura o mais aproximada daquilo que ela é, do que nós encontramos. É ótimo se houver uma pessoa que descubra um documento na Inglaterra ou na Aústria sobre a D. Maria I. É por isso que a história é viva. Há mais alguém que encontrou mais um documento que acrescenta algo de novo.

Dizia-se que D.Miguel não era filho da D.Carlota Joaquina. Por que é que não se faz o teste de ADN? Para se tirar a dúvida. Acho que em Portugal faz falta um maior apoio da parte científica à investigação histórica.

Então não há muito espaço para a investigação histórica em Portugal...

Sei que foi muito difícil a uma equipa exumar o corpo de D.João VI, tendo se comprovado que ele foi realmente envenenado como se pensava. Mas são pessoas muito teimosas, no bom sentido, que conseguiram isso. Não há verdadeiramente, da parte da ciência e da parte cultural e mesmo dos nossos governantes, apoio a uma investigação que tem de ser feita por quem sabe.

Gostava de investigar se é ou não verdade que D.Pedro IV de Portugal e D. Miguel eram irmãos e pequenas outras coisas. Acho que em França e Inglaterra estão mais abertos a isso e aqui não.

Neste momento o que acho mais perigoso em História é o sensacionalismo. Há uma grande preocupação em publicar livros que tragam coisas sobre os reis e sobre a sua vida sexual. Hoje há uma apetência para o público gostar de saber coisas acerca dos nossos reis, tal como quer saber sobre os políticos, os atores ou as atrizes. Existe muita invenção nesses livros, pois não se baseiam em nenhuma documentação. Depois há a questão do romance histórico em que se fala de reis e rainhas, cujo o dia-a-dia é inventado como se estivessem na atualidade ou numa telenovela. As pessoas que leem são ávidas de histórias e não têm capacidade para destrinçar o que é ou não é verdade. O que está nos romances históricos sobre reis e rainhas, acerca da sua sexualidade é totalmente diferente do que era na realidade. É preciso ler muito sobre os comportamentos que se tinha na altura para se perceber como era. Os romances históricos fazem, na minha opinião, mal à história verdadeira.

Nas investigações que faz quando são de figuras contemporâneas, recorre a entrevistas a familiares para recolher mais informação?

Quase sempre fiz investigações muito ligadas ao passado, por exemplo ligadas às mulheres da 1ª República. Fiz um estudo sobre Antónia Pusich, que foi a primeira jornalista portuguesa e consegui encontrar descendentes, até porque ela casou três ou quatro vezes e encontrei bastantes familiares que me falaram sobre ela. Na sequência de um conjunto de artigos sobre os presidentes da República cheguei a falar com alguns familiares do Manuel de Arriaga que me ofereceram também uma fotografia inédita do anterior governante. 

Fez uma pós-graduação em Histórias e Culturas do Brasil. O que a motivou a ingressar nesse curso?

Não cheguei a terminar a pós-gradução, mas fiz toda a parte curricular e os trabalhos. Gostava de saber mais sobre a história e cultura do Brasil. Falamos muitas vezes da História de Portugal e esquecemo-nos do Brasil e de Angola e Moçambique. Achei que tinha uma lacuna grande de conhecimento sobre o Brasil que teve um papel muito importante sobretudo a partir do século XVIII em que há grandes relações de comércio, etc. Comecei a fazer esta pós-graduação também pelo gosto por estudar.

“É preciso paixão e persistência”

Que características tem de ter um bom historiador?

É importante ser uma pessoa que leu e que lê muito. É importante ler literatura, romances, etc. Eu nunca seria capaz de escrever aos 20 anos sobre a Rainha Santa Isabel se não tivesse lido Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, entre outros. Antes de a pessoa ir investigar tem de ter conhecimentos sobre a escrita, como é que homens como Almeida Garrett ou Eça de Queiroz, que não nos apresentam história, mas de certa forma nos falam da história, descrevem as pessoas da sua época. É preciso muita persistência, ler muito e verificar se a informação está ou não correta. E como em tudo, é preciso paixão.

Qual a investigação histórica que mais lhe deu prazer fazer?

Gostei muito de escrever sobre a D.Maria II, que é o meu último livro a ser editado em breve. Estive quase um mês no Brasil a fazer investigação, porque eles têm muitos elementos importantes, uma vez que ela nasceu no Brasil e era filha de D.Pedro I, que consegue que ela chegue ao trono.

Quais os seus projetos para o futuro?

Vou agora fazer uma investigação sobre a infanta D.Maria, filha mais nova de D.Manuel, irmã de D.João III, que nunca casou e que tinha um cenáculo. É um outro projeto em que eu estou envolvida. Ando a investigar o que ela realmente fez e o que é que romanceado sobre a sua suposta paixão por Camões. Parece que é totalmente romanceado, mas ainda não posso fazer essa afirmação.

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